Reinventar a Vida

Foto Sara

Há quem tenha a capacidade de nos abraçar com as palavras. Em diversas circunstâncias, senti a escrita de Valter Hugo Mãe como um verdadeiro abraço, uma escrita energizante, uma demonstração de carinho pelo Homem, pela Humanidade, por um Mundo que se deseja melhor, mais honesto e generoso, onde possa haver lugar para sonhar, para crescer e fazer crescer.
Em 2010, VHM dava à estampa, pela editora Objectiva, dois pequenos livros que me têm acompanhado. O rosto e As mais belas coisas do mundo, ambos edições limitadas, numeradas e assinadas. Apenas trezentos exemplares de cada um. Do primeiro coube-me o número sessenta e nove. Do segundo, o número duzentos e cinquenta e dois. O primeiro, com belíssimas ilustrações hiper-realistas de Isabel Lhano e o segundo com ilustrações de Paulo Sérgio BeJu.

Na altura, haveria de comprar dois exemplares de As mais belas coisas do mundo, tendo oferecido um deles a uma amiga que perdera o avô por aqueles dias. O livro apresentava a história de um rapazinho de dez anos e do seu avô, com quem partilhava a aventura da descoberta da vida e do respeito pelo próximo. Lembro-me de me sentir imensamente abraçada por uma escrita clara, límpida, mas profunda, sem presunções ou moralismos, que deixaria em mim marcas indeléveis. Esta narrativa de VHM aborda a beleza e a importância da partilha intergeracional, fala dos mistérios da vida, da construção do conhecimento e da capacidade de fazer acontecer, das dúvidas e das descobertas e apresenta-nos avô e neto no processo de pensar as mais belas coisas do mundo, muito para além do tangível, de procurar saber onde se esconde a felicidade e como poderá ser o caminho para lá se chegar, de pensar e aprender a vida, de aprender o sonho, de aprender a poesia. E é este processo de descoberta e construção do que é “ser-estar-fazer” no mundo que nos eleva e emociona, de tão bem cerzido e apresentado pelo autor.
Em O rosto VHM aborda, igualmente, a descoberta do próximo, do outro e da essência que o habita, protagonizada também por um menino de tenra idade, filho de um guarda florestal, habituado, no isolamento do alto de um monte onde vivem sozinhos, a perscrutar, juntamente com os pais, seus únicos companheiros, a lonjura silente como forma de prevenção dos fogos. O autor recorre, em ambos os livros, ao ponto de vista da primeira pessoa, neste caso um rapazinho, narrador protagonista, gerando empatia entre a personagem e o leitor: “Durante muitos anos, eu, a minha mãe e o meu pai vivemos nessa casa no cimo de um monte mais ou menos afiado, que custava subir e descer. Explicaram-me que a nossa tarefa era ver ao longe, e eu via ao longe sem saber o que esperar e esperava que um dia pudesse entender melhor porque tínhamos de o fazer.” (Mãe, 2010b:2). Este entendimento e esta descoberta da vida e do outro só viriam a acontecer quando o menino entra na escola e descobre, por via da professora, o significado e as cambiantes de um rosto e o que está para além dele, a essência da pessoa humana e o que nela há de subtil, de único, de extraordinário.
Nestas obras a que aludo, o autor privilegia a dimensão psicológica do protagonista em detrimento da acção, porque não é a acção o que verdadeiramente importa, mas sim o sujeito da narrativa, o actante e o impacto transformador das suas reflexões, das interrogações, das dúvidas e das respostas que vão sendo tecidas, ainda que de uma forma simples e despojada, como só uma criança poderia fazer. VHM consegue tudo isto, usando uma prosa que nos prende e arrebata, porque simultaneamente despida de artifícios e límpida, sem deixar, contudo, de ser profunda e inquietante. Uma inquietação boa: “Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma (…). Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal. (..) Toda a vida precisamos de estar atentos, senão vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor.” (Mãe, 2010b: 28).
Em 2019, surge uma nova edição do livro As mais belas coisas do mundo. Desta vez editado pela Porto Editora. Surge, agora, como livro de grande formato, desta feita com ilustrações de Nino Cais, em papel de alta gramagem e especialmente bonito. Não resisti. Comprei. Não percebi logo que o texto sofrera alterações. O que ali estava, no novo livro, seria, em substância, o mesmo que estaria no primeiro livro, supus. Mas, na verdade, o texto fora editado, porque o autor sentira necessidade de lhe mexer, de acrescentar, de reformular, de inserir, de substituir… Em suma, o texto renascera. “Uma obra de arte nunca se termina, só se abandona”, disse-o Leonardo da Vinci no Tratado de Pintura, o que é válido para todas as artes. E veja-se aqui.
“O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar…” (Mãe, 2019: 7), assim começa o livro, com o rapazinho evocando as sábias palavras do avô, nesta nova versão ainda mais atento às pessoas e ao seu coração, um “detective de interiores”, inspeccionando, sobretudo, sentimentos, porque, segundo ele, seria a forma de nos aproximarmos da felicidade e de lhe “tirar as medidas”. Todas as memórias do rapazinho vão no sentido da revisitação das palavras do avô e do seu contributo para repensar(mos) a importância da descoberta do outro, a importância de um abraço, mas também a importância da descoberta e do encontro com o próprio, da tomada de consciência das forças e das fraquezas de cada um, da capacidade de colocar(mos) questões, porque, como ele dizia “Inventar perguntas é aprender. Quem não aprende tende a não saber perguntar. Muita gente não tem sequer vontade de ouvir. Fica do tamanho de uma ervilha, no que às ideias diz respeito.” (Mãe, 2019: 14). E VHM volta a apresentar tudo isto com uma prosa clara, bem pensada, palavras escolhidas em pormenor, metáforas e imagens simultaneamente enternecedoras e acutilantes, não ferindo, mas pondo o dedo na ferida, convidando o leitor a uma reflexão sobre o conteúdo do que escreve, mas também sobre a forma como escreve, sobre a sintaxe, sobre a semântica.
Com o avô, o menino aprendia a vida, mas também a morte, por esta fazer parte da vida. Tudo lhe era explicado de forma serena, com uma inteligência que vinha, sobretudo, do coração, e que ajudava a cultivar o respeito e a celebrar as boas memórias dos que desapareciam, sem que deixassem, por isso, de continuar a celebrar a vida. Certa vez, o avô colocou-lhe aquela que seria, porventura, a pergunta mais desafiante: “Quais seriam as mais belas coisas do mundo?” Ele não soube exactamente o que dizer, mas alvitrou algumas hipóteses: os filhotes de cão, a cara das mulheres, as nuvens, as árvores… Mas o avô divergia, ou melhor, alertava “(…) não haviam de ser a amizade, o amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado, o ter-se respeito por cada pessoa (…)” (Mãe, 2019: 25). Neste processo de pensar, repensar, fazer e refazer, o menino tornava-se pessoa humana. E quando o avô teve que partir, de tão cansado e velho, ele sentiu que o avô era das coisas mais belas do mundo e aninhou-se na esperança de, um dia, poder parecer-se com ele e ser capaz de reinventar a vida.
E é desta forma comovente que VHM toca num tema fulcral dos nossos dias: o respeito pelos mais velhos e a valorização dos seus saberes e competências. As relações e as práticas intergeracionais entre crianças e idosos evidenciam-se como sendo de extrema importância e com impacto muito positivo não só no desenvolvimento pessoal e social de crianças e jovens, mas também no desenvolvimento equilibrado e responsável das comunidades e da sociedade em geral, onde todos têm um papel a desempenhar e a cumprir, tendo por base o respeito e a solidariedade.
A Valter Hugo Mãe, escritor sobejamente conhecido e reconhecido no panorama literário, com livros para todas as idades, fica a nossa reverência pela sua notável capacidade de escrita e pela lição de inteligência emocional que nos oferece ao longo das páginas destes seus livros, que são para ler e reler.

in “Reinventar a Vida”,  Revista SER, edição 21, Sara Loureiro, Abril 2020.

 

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