O homem que nos fez sair de casa

A noite implorava que ficássemos, o entardecer acinzentou-se e sugeria a companhia da chuva, essa amante dos amantes, que nos canta para lá das persianas; mas saímos, para logo nos abrigarmos perante o conforto de um exímio contador de histórias.

À chegada, encontrámos um grupo não muito numeroso de pessoas assistindo a um filme. Pensei logo que nos tínhamos enganado na sala, mas não, sou distraído ao ponto de não ter percebido que era mesmo assim.

O narrador do filme era o seu realizador, o homem-que-nos-fez-sair-de-casa, Jorge Silva Melo, que ainda não estava presente fisicamente, mas a sua alma parecia transbordar do ecrã e foi-se entornando generosamente sobre os presentes, um fluido muito próximo da pureza da água, da poesia.

Que dizer de uma pessoa que se enternece e recolhe prazer em captar o silêncio de um actor antes de entrar em cena?

No final daquelas memórias, boas e más, dos vivos e dos mortos, do excelente documentário que nos foi dado a ver, acenderam-se as luzes da sala, surgiram os aplausos e fomos presenteados com a entrada em cena do protagonista.

Veio simultaneamente apresentar-nos o filme “Ainda Não Acabámos” (que por acaso tínhamos acabado de ver) e um livro intitulado “O Século Passado”, uma compilação de crónicas, memórias e vivências, das aventuras da sua alma com tudo aquilo que o maravilhou ao longo da vida. É uma personagem, pensei, aquele homem-que-nos-fez-sair-de-casa, no melhor sentido que o adjectivo possa suscitar, pois fala como aquelas personagens de discurso fácil, mas muito estruturado e entusiasta, que nos prendem até à última gota de cada palavra.

Dei-me por feliz, quem diria!?, por não ter tido trabalho naquela sexta-feira e ter podido estar presente. Era estranhamente o único actor na sala. Sem pretender desculpar a ausência dos demais colegas (que alguns não merecem desculpas nenhumas), muitos hão-de ter tido trabalho naquela noite, daí o facto de ter sido o único a aparecer e, como tal, assumir a representação dos que tiveram que faltar — uma espécie de protótipo dos ‘artistas-desunidos’.

A Rosa Azevedo fez uma introdução apaixonada à obra, mencionando a sua importância e riqueza de conteúdos, causando-nos imediata cobiça e curiosidade.

E a conversa soltou-se, desenvolveu artérias a partir duma bifurcação pulsante e musculada, muito parecida com o coração, chamada de Teatro, ramificou-se pela crítica (ou pela sua ausência), pelo público (idem), pelos demais agentes do meio, incluindo os do poder, pelas estórias soltas que brotavam e corriam livres através do sorriso de quem as ouvia, sem pestanejar.

Foi um belíssimo serão, aquele, defronte do homem-que-nos-fez-sair-de-casa.

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