Artigo de Francisco Naia
Paris, 27 de Novembro de 2014. Às onze horas e vinte e sete minutos, quando o Presidente da nona sessão do comité intergovernamental da salvaguarda do Património Cultural Imaterial da Unesco, Proclamou o Cante Alentejano como Património Imaterial da Humanidade.
Foi o bastante para que a notícia corresse célere pelas quatro cantos do planeta e desse uma grande alegria aos milhões de portugueses espalhados pelo mundo e, particularmente, aos alentejanos e seus descendentes.
Data memorável que assinala, justamente, um bem imaterial profundo e representativo de uma cultura com raízes de séculos, preservadas por gerações e gerações do povo alentejano, que, principalmente, por via oral, boca a boca, trouxe, através da sua mais representativa forma de expressão do seu sentimento – o cante ou canto – quer individual, quer coletivo, ligado ao trabalho, à saudade e ao amor à terra.
O repertório de música vocal, essencialmente os cantares do trabalho, é cantado em grupo(s), sem qualquer acompanhamento musical, e transmitiu-se de terra em terra por via da população rural, que se deslocava pelos grandes latifúndios para trabalhar durante os momentos das sementeiras, da mondas e da ceifa, da apanha da azeitona etc..
Assim, tudo leva a crer que, no começo do nosso século, este repertório fosse cantado pelos trabalhadores rurais: homens, mulheres e crianças conheciam as modas e cantavam-nas, como até hoje vai acontecendo.
Essa gente, pobre e humilde, levando uma vida inteira a trabalhar no campo, por montes, montados e vales, ao sol à chuva, ao frio, encontra no canto coral um lenitivo ante a rudeza do labor. E, assim, quando tem algum tempo livre, ou na ida para o trabalho (ao romper da bela Aurora), ou no regresso (ao pôr do Sol), é vê-los agrupados a cantar os seus belos cantos/lamentos/sonhos… com as suas vozes entoando as melodias, muitas delas improvisadas, mas que ficaram imorredoiras.
Mas o cante foi para além dos campos. Chegou às vilas e às grandes cidades.
Existem ex-trabalhadores rurais trabalhando em serviços públicos. Nos arredores de Lisboa e de Setúbal, por exemplo, encontramo-los no desempenho das tarefas mais diversas. Estão longe das suas terras, mas vão-se reunindo ao entardecer e à noite para conviverem, recordar e, por fim, cantarem em grupo as modas da sua região.
Esta transformação social implica uma transformação cultural que incide especialmente sobre o seu repertório musical tradicional. É neste ponto que o repertório de cada terra se funde num só repertório e, daí a preservação cultural dos mais variados temas do cante. Chega a haver grupos cujos membros são cada um da sua terra e cada um traz o que aprendeu. Para mim, esta é uma riqueza incalculável para a preservação da cultura do cante. Já para não falar da temática de cantes caracteristicamente urbanos, onde se fala das fábricas, das oficinas etc..
Afinal como cantam os alentejanos as suas modas em grupo? Vejamos:
Um dos cantores, em segunda voz, levanta a moda – é o solista ou ponto. Dentro de certos limites expande-se à vontade, manifestando assim os recursos vocais que possui.
O alto, em seguida, apodera-se do tema, juntando-se-lhes, depois, a segunda voz.
Aparece depois uma quarta voz – os baixos – que exerce na harmonia a função tónica fundamental.
Temos pois aqui quatro vozes: os pontos, os altos, (tenores); os barítonos e os baixos.
Nos coros mistos aparece mais uma voz: os sopranos… Neste contexto o coro passa a cantar a cinco vozes: soprano, alto contralto, tenor e baixo.
Em certas modas distinguem-se perfeitamente essas vozes, constituindo esta uma forma de cantar com raízes profundas na polifonia antiga. O facto é que a riqueza dos sons e o valor das nossas modas, sendo cantadas por pessoas que, apesar de não terem de música os mais rudimentares conhecimentos, executam, magnificamente, trechos com base nas formas mais eruditas.
É tudo o que se me oferece, por agora, dizer sobre a riqueza deste Património da Humanidade bem português.
Na próxima edição irei continuar a desenvolver o tema situando o ressurgimento do cante no baixo Alentejo.