Entrevista de Joaquim Gouveia
Célia David é atriz há mais de trinta anos. Hoje assume a direção do Teatro de Animação de Setúbal, com a mesma confiança e motivação com que entrou para a companhia acreditando nas suas potencialidades e exibindo um historial pleno de oportunidade e valor. Sabe que a profissão que escolheu é difícil mas não abdica porque sente uma vocação muito própria de quem está no sitio certo a desempenhar a função mais adequada. O TAS é para manter vivo e espera a breve trecho poder vir a apresentar novos espetáculos capazes de captar o interesse do público em geral.
– Porque escolheu a profissão de actriz?
Não sei se escolhi ou se fui escolhida. Como os animais de estimação que nos levam a adotá-
Los, o teatro assumiu esse papel na minha vida. Sempre tive tendência para as artes mas não
pensei fazer disso profissão. Quando vi, já estava. No entanto, a visão que tenho do trabalho é
a participação activa na sociedade, ao serviço dos outros e a intervenção cultural parece-me o
mais próximo da minha vocação.
– Quais são os predicados maiores da profissão?
A entrega e o despojamento. A disponibilidade para criar e experimentar a mudança e a
transformação. A energia e a imaginação, a força e empenho no trabalho, uma constante
aprendizagem. Evitar, sobretudo o aborrecimento como diz Peter Brook, “O Diabo é o
Aborrecimento”.
– É uma profissão com futuro que aconselharia aos jovens?
Por norma não dou conselhos. Eu acho que todas as profissões têm futuro, apesar das modas
ou das tendências de mercado, como agora se diz. Faço teatro há mais de 30 anos e sempre
soube que era uma profissão de risco, um trabalho instável. Apesar disso, tenho resistido e
acredito que vale a pena. Quantos médicos, professores, engenheiros, agricultores, etc., não
estão em situação difícil?
– A representação é o fingimento do ator. Concorda?
Discordo em absoluto. O ator é sincero. Através da imaginação, representa a realidade e torna verdadeiro o inverosímil. Experimenta situações e cenas mirabolantes, cria e recria
personagens fantásticas mas sempre com convicção. Naquele momento o que acontece é
verdade. Sem fingimentos.
– Que papéis mais gostou de interpretar?
Em geral gosto do meu trabalho. Posso destacar “O Marinheiro” de Fernando Pessoa, “O
Tigre” de Shisgall, no TAS, ou “Artistas e Admiradores”, de Ostrovsky, no Teatro Estúdio de Lisboa. Também posso realçar o meu trabalho como encenadora que me permitiu abordar textos de Brecht, Lorca e Ionesco, de forma bastante gratificante.
– Que autores lhe são mais gratos?
Tenho especial atração pelo teatro expressionista, do ponto de vista da representação é um desafio para o trabalho de ator. No entanto, os clássicos também me fascinam pela consistência dramatúrgica e pela universalidade de temas. Posso eleger ainda, autores portugueses como Gil Vicente, ou Almeida Garrett, acrescentando Manuel António Pina, Rui Zink, Jorge Palinhos e José Eduardo Agualusa, entre outros. No teatro, como na vida, tento não ter preconceitos.
– A televisão, nomeadamente as telenovelas e séries são o garante do trabalho para muitos actores. No seu caso, no entanto, não há uma relação muito directa com esta alternativa.
Porquê?
Tive contacto com essa área muito cedo na minha carreira. Fiz novelas, séries e algum cinema.
Não sei exactamente o que acontece, talvez o meu vínculo ao TAS e a Setúbal . A televisão
exige uma grande disponibilidade e nem sempre é compatível com o teatro. É de facto,
financeiramente mais compensador, mas nada se compara ao teatro.
– O Teatro de Animação de Setúbal tem futuro?
Tem que ter futuro. De passado vive a História. O TAS de hoje não se compara ao de 1975, ou ao dos anos 80, ou ao de 2000, quando o Carlos César nos deixou. A vida passa. É preciso saber renovar e adaptar-se a novas realidades. As Companhias de Teatro actualmente funcionam como empresas e não como cooperativas ou associações. Temos que saber guardar o passado que temos e não desperdiçar o futuro. Não podemos ficar agarrados a modelos ultrapassados, temos que avançar por muito que custe. Eu estou disposta a recuperar o TAS, por isso voltei à Direcção. Espero que esse esforço seja recompensado. Conto com as empresas para novos financiamentos, em troca não lhes dou só o passado do TAS, dou-lhes projetos novos e de interesse para a cidade e para a região.
– “Bocage, inferno e paraíso”, é o espetáculo que faltava nas comemorações dos 250 anos do nascimento do poeta? Do atrevimento ao musical, da história do vate à contemporaneidade é um espetáculo muito abrangente. É este o caminho que o TAS tem que voltar a trilhar?
Não sei se é o espetáculo que faltava… Sei que é o espetáculo que o TAS queria fazer, na sequência de “Bocage e as Ninfas” de Fernando Gomes. Fazia todo o sentido dar a conhecer a vida e a obra do poeta e dignificá-lo como merece, fugindo da imagem caricata de boémio e mulherengo, apresentando um homem com uma vida e uma alma de génio. Bocage continua a ser uma personagem mas, neste espetáculo, é um homem e não um boneco como muitas vezes é apresentado. O fato de termos optado por um musical, faz parte da nossa tradição como companhia de teatro, que ao longo de mais de 40 anos tem habituado o público a uma programação bastante eclética.
– O elenco fixo do TAS é cada vez mais reduzido. Que garantias são dadas para o futuro da companhia?
O elenco fixo do TAS está a ser reduzido mas não o elenco das peças, como se pode verificar neste espetáculo onde temos estagiários e atores convidados. É esse o caminho, não podemos perder a qualidade artística e sabemos como e quando devemos apostar em novas colaborações. O teatro é mudança e transformação. Neste momento, estamos aptos a valorizar e renovar os recursos de que dispomos.
– Que peça se segue no vosso repertório
Estamos a preparar a próxima época e está a ser feita a programação para 2017/18.
Posso adiantar que, se se mantiver o apoio da CMS e o protocolo com a Lisnave, podemos apresentar um plano de actividades muito ambicioso que irá comtemplar parcerias e co-produções com outros agentes culturais. Um projecto iniciado em 2016 “Diálogos na Cidade” terá continuidade e um autor português é garantido bem como a programação para as escolas do ensino básico e secundário.
– Há público para manter o teatro em Setúbal?
O Teatro não é um Mercado Abastecedor. Precisa de apoio e o apoio escasseia. Enquanto não
se valorizar a Cultura e não se der importância à sua função na sociedade, a nossa missão é
muito ingrata. A Escola é o garante da formação, tem que se apostar no ensino. Em Setúbal ou
em qualquer outro lugar, queremos um público informado, culto, exigente, crítico. Só assim
temos a certeza de o manter e fidelizar.
– Que personagem lhe falta representar?
Tantas! Todas as que interpretei são poucas comparadas com as que me faltam interpretar…
Deixei passar a Nyéguina, de “A Gaivota” de Tchekov, agora já não tenho idade e ainda me
faltam alguns anos para a mãe de “A Casa de Bernarda Alba”, de Garcia Lorca, quem sabe…