Nuno David (pintor) “TODA A ARTE TEM UM DESÍGNIO”

Entrevista de Joaquim Gouveia

 

Nuno David é um pintor angolano radicado há 40 anos em Setúbal. Cedo se iniciou na arte colhendo ensinamentos e experimentando nuances que lhe afinaram o traço. Sente-se de bem consigo e com a cidade que o acolhe onde diz ser contemplativo do rio e da serra que a adornam. Trabalha em várias técnicas mas a aguarela é onde expressa a sua pintura poética. É um homem da cultura tendo experimentado a rádio tanto em Angola, como por cá onde se fez ouvir na Rádio Azul e na Rádio Pal. Tem obra espalhada pelo mundo e no Museu da Presidência da República. Contudo acredita que é apenas um homem simples capaz de traduzir na tela as cores da vida. Na entrevista que lhe propomos Nuno David descobre-se com o mesmo à vontade com que pinta.

 

Setúbal Revista – Como é que reagiu à mudança quando chegou a Setúbal, depois de ter nascido e vivido em Angola. Continentes e cidades diferentes, usos e costumes e cultura diferenciados…

Nuno David – Reagi bem, embora com alguma estranheza. Já conhecia parte do País, quando em férias vinha a Portugal, em criança e adolescente. Em Dezembro de 1976, vindo do Brasil, Setúbal era uma cidade muito diferente. Causou-me uma boa impressão pela pacatez, tranquilidade, gentileza das pessoas e os arredores tão arrebatadores.

SR – Em jovem esteve ligado à Rádio Clube de Cabinda, onde iniciava e fechava as emissões. Foi uma experiência passageira…

ND – Sim, com 16 anos passei por essa experiência gratificante. Um pouco mais tarde e quando vivi em Luanda, fiz um programa de rádio para jovens na Emissora Oficial de Angola, “Clube Juvenil “. Também com o meu amigo escritor, António Castro apresentámos um outro programa no Rádio Clube de Angola – Kosmus 11. A comunicação e a rádio sempre me fascinaram. Já em Setúbal, sobretudo nos anos 90, os palcos foram as rádios Azul e Pal, na primeira com um programa de ecologia e em Palmela durante cerca de 4 anos, sábados à tarde, também com o António Castro e outros amigos, “Samarcanda”.

SR- E a paixão pela pintura quando apareceu?

ND – Muito cedo. No ciclo preparatório, quando um professor numa aula, depois de lhe mostrar um desenho me disse que “tinha uma tendência para as artes” e me aconselhou a “desbravar caminho”. O meio artístico em Angola, nos anos 60, nas artes plásticas era muito pobre, mas não desisti. Curiosamente, convivi com militares em serviço com formação artística e que me proporcionaram visitas às suas exposições de pintura. Entusiasmado, fui estudando, e também pintando. Fiz nessa época em Angola, duas exposições. Mais tarde, em Setúbal, já em meados dos anos 80 do século passado, tive a felicidade de conhecer um pequeno grupo de universitários que elegeram a cultura e a ecologia, como opções prioritárias nas suas vidas. Influenciado por estas matérias, e aliado ao facto de trabalhar no Parque Natural da Arrábida e na Reserva Natural do Estuário do Sado, onde se respiravam conceitos inovadores, a pintura foi encarada com mais regularidade e que mais tarde se veio a consolidar. Estas vivências, deram-me o folgo e o entusiasmo de que necessitava para trilhar decisivamente este caminho. Destaco nesse grupo, os arquitetos Eduardo Carqueijeiro, Alexandre Murtinheira e o Dr. Salvador Peres.

SR – Está radicado em Setúbal, há mais de quatro décadas. Que mais o fascina neste concelho?

ND – Setúbal e a sua região são ímpares. Fez exatamente no passado dia 4 de Dezembro, 40 anos da minha chegada a esta Terra. Reconheço que, pelo facto de ter trabalhado nas duas Áreas Protegidas que ajudei a consolidar, foram marcos importantes na minha formação ecológica e artística. É uma região “bafejada” pela natureza. Os contrastes são por demais evidentes. Setúbal é um concelho que se pode orgulhar de possuir um património riquíssimo nas vertentes científica e paisagística. As pessoas são a principal riqueza. É uma cidade estruturada enquanto isso, onde o cidadão pode facilmente usufruir dos ambientes da serra, do rio e do mar, tudo aqui tão perto, quase “num abrir e fechar de olhos”. Está tudo à mão… Que privilégio. Assim o saibamos aproveitar e proteger! Tem obras de pintura espalhadas pelo mundo em coleções institucionais e particulares.

SR – Como se define enquanto pintor e que relevância dá ao facto da sua obra ser tão apreciada mesmo fora de fronteiras?

ND – Tenho exposto em variados sítios, o público gosta e alguns não se contentam com a breve passagem pelas exposições. São originários de várias partes do mundo e como tal, levam as obras para as usufruírem nas suas vidas. É sempre com redobrada satisfação sentir que os meus trabalhos tocam algumas pessoas e as deixam felizes. A arte seja ela qual for, tem este desígnio. Contribuir para um mundo mais esclarecido, para um mundo melhor. As sociedades cultas não têm receios do futuro.

SR – Três quadros seus figuram no Museu da República Portuguesa, sob temática alusiva a “Os Lusíadas”. Sente-se um pintor de mérito e prestígio?  

ND – Não, sou um vulgar pintor, que tem tido a sorte de estar muitas vezes na hora e no sítio certos. Uma ideia brilhante surgiu de alguém que, felizmente quando das comemorações do Dia de Portugal e das Comunidades, em Setúbal, no ano de 2007, teve o propósito de exaltar a obra sublime de Camões, expressa no convite feito aos cidadãos para construírem “Os Lusíadas”, pelos seus punhos (manuscritos), e que teve grande adesão, exaltando um dos maiores da nossa literatura. A edição tinha, necessariamente, de ser acomodada com alguma arte pintada. Com esse objetivo foi promovido um concurso a nível nacional, iniciativa da Presidência da República, da Câmara Municipal de Setúbal e da Artiset. O júri entendeu que, três peças de minha autoria mereceram figurar nessa edição especial, formando o conjunto com obras de mais alguns pintores de Setúbal, também representados.

SR – Na sua pintura utiliza diversos materiais. No entanto parece ser nas aguarelas onde mais gosta de se exprimir…

ND – A insatisfação é muitas vezes a atitude que vivo no dia a dia. Experimentar, aperfeiçoar, trabalhar com vários materiais, faz parte do meu ritmo. Que país para expressar a pintura poética sobretudo em aguarela. Esta técnica é complexa, trabalhosa e que requer muito de nós. É a expressão da leveza, da transparência, da luz que me apaixona. Procuro não ficar por aqui e trabalho igualmente noutras técnicas e materiais. Noutras facetas da pintura que faço, as minhas mensagens de preocupação, das incertezas que nos assolam, os alertas e interrogações. É a pintura de intervenção, do pensamento, do acontecimento, das emoções que se refletem nas telas, utilizando um jogo de formas e de cores.

SR – O que mais gosta de pintar: o retrato, a paisagem, o improviso…

ND – A elasticidade mental é positiva e desejável, faz – nos bem. A atuação artística no retrato tem o seu fascínio, mas ao mesmo tempo, corre o risco de se tornar redutora. O modelo sublime na pintura, é a natureza nas suas mais variadas nuances. A humana, no recurso ao pensamento, aos acontecimentos que nos marcam pela positiva ou pela negativa e o ambiente que nos rodeia. Nas paisagens, seja a urbana, a rural, a marinha, ou outras, tento imprimir-lhes sempre um cunho poético, que entendo ser a forma de conciliar as atmosferas que melhor traduzem e expressam os estados de alma. O improviso pode resultar se o momento for feliz. A pintura é como um livro de páginas sem conta, mais coloridas ou menos, onde se refletem e exaltam genericamente as tristezas, as alegrias, as revoltas, as mensagens, os alertas etc.. A pintura deve ser sempre um veículo de mensagens. São as cores e as formas que assim a ditam. As paisagens são as expressões que por enquanto mais privilegio, embora aflore outras temáticas.

SR – A pintura é uma arte para pessoas tendencionalmente ricas?

ND – Não, definitivamente! A pintura não exige grande logística. Requer tenacidade e muito trabalho de experimentação. Também paixão, conhecimento das várias técnicas, dedicação, muito estudo e capacidade de observação. Há uma recomendação que é fundamental, principalmente para quem começa. Invistam sempre em material de boa qualidade, tanto nos suportes, tela, papel e outros, tintas e pincéis porque, só assim se conseguem bons resultados que serão determinantes nos entusiasmos ou nas deceções para quem está a iniciar-se na pintura.

SR – Durante muitos anos trabalhou para o Ministério do Ambiente, tendo uma relação privilegiada com o Parque Natural da Arrábida. De que forma a natureza o inspira?

ND – O Parque Natural da Arrábida e a Reserva Natural do Estuário do Sado, são dois “Mundos” fantásticos que todos temos à nossa guarda. Reconheço que, o facto de ter trabalhado três décadas nestes territórios, me despertaram para um maior rigor na observação das atmosferas, das múltiplas paisagens, únicas e me formataram e sensibilizaram para uma vertente na pintura que se prende com a paisagem poética que se transposta para a tela ou papel. A natureza é a fonte de toda a arte, a que influencia o pensamento, as atitudes, é a raiz da expressão humana, que a condiciona e dela faz parte. Um poema, uma música, uma paixão, uma vivência, pode marcar positiva e ou negativamente, é sempre um ponto de partida, um pretexto para a expressão pictórica.

SR – Há obras que destaca no conjunto da sua obra?

ND – O meu acervo de pintura, que já é vasto, não tanto como gostaria, reflete o que sou. Já passei por vários entusiasmos, fases, e tenho o propósito de passar por outras tantas. Só desta forma existe a grande razão de pintar. A aguarela é uma grande paixão, tendo como principal referência a riqueza estética e cénica do meio em que tenho a felicidade de viver. Tenho para mim que, devo também explorar outras temáticas que me são caras e tenho-o feito com relativa satisfação. Continuar a dar corpo e a concretizar desafios que me são colocados, factos encorajadores a prosseguir. É difícil, senão impossível dizer algo mais. Espero continuar a surpreender-me.

SR – Recentemente, a convite da Casa da Poesia de Setúbal pintou um quadro ao vivo sob a temática de Bocage. Gosta deste tipo de desafio?

ND – Sim, gosto. Os desafios são sempre entusiasmantes e testes às capacidades de respostas nos vários contextos. Gosto de pensar e pintar num ambiente de alguma pressão. A obra a que se refere, resultou de um convite da Casa da Poesia, que muito me honrou, numa conferência sobre Bocage, no contexto da cultura europeia do seu tempo. Abracei este compromisso com entusiasmo, serenidade e foi também muito curioso avivar o que sabia e aprender mais sobre a vida e a obra de um dos maiores poetas portugueses de sempre, Bocage, o génio. Impunha-se fazer um trabalho figurativo para uma mais fácil interpretação, representando atmosferas, influências, episódios, gentes e viagens que marcaram a sua vida. Já pintei a temática Bocage por diversas vezes e em distintos locais e diferentes expressões. Isto acontece pelo fascínio que esta personagem me provoca.

SR – Que trabalhos tem em mãos?

ND – Ainda quero passar pelos inesgotáveis Sado e Arrábida, sobretudo no lugar dos Conventos, tentando pintar as místicas atmosferas daqueles lugares únicos. No rio a leveza inspiradora das mansas águas que, bordam incessantemente as suas margens. A Costa Vicentina está na mira, por ser um trecho do nosso património natural ainda bastante intacto e que urge preservar. Quero pintá-la, também, na soberba envolvência dos mare. Existe um outro projeto que há muito persigo e que por enquanto mantenho em reserva, preferindo não o divulgar por agora. E mais, fazer quando nos confrontamos com o imprevisto. Isso é avançar.

SR – Que balanço sobre a sua recente exposição na Casa da Baía de Setúbal?

ND – Foi a concretização de um desafio que correu bem. É reconfortante ver que foi muito visitada. O espaço é atrativo, tem um horário de galeria alargado às horas de lazer do grande público e atrativos de diversa ordem. Cumpre-me agradecer a oportunidade e o apoio que a Câmara Municipal de Setúbal me proporcionou, também de um grupo restrito de amigos, pelo incentivo, colaboração e divulgação e ao público que a visitou. A razão deste acontecimento, prendeu-se com as comemorações dos meus 40 anos à volta da pintura, mas também e sobretudo, homenagear a região, esta cidade e as suas gentes, quando são decorridos os mesmos 40 felizes anos da minha vida numa terra que é berço de inúmeros e grandes artistas, com quem muito tenho aprendido.

 

 

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