Entrevista de Joaquim Gouveia
Francisco Naia é um resistente da música, das canções e da palavra. Do Cante Alentejano, ao Fado de Coimbra e à Canção de Intervenção construiu uma carreira fértil em êxitos e atividade espalhando a alegria e o sentimento da música portuguesa aquém e além-mar. Hoje sente-se recompensado mas não esquece os tempos da censura ou o facto de aparecer muita música cantada em inglês por vários grupos nacionais que ignoram os nossos poetas e os cultores da nossa língua. Percebe o valor da cultura e da educação e sabe quão maltratados têm sido os que querem ter uma postura séria ou, como diz, “é quase criminoso discordar, não ser corrupto!”. A sua discografia remete-nos para a preservação de valores sociais e patrimoniais. Acredita que a música de intervenção continua a fazer todo o sentido num país a contas com os males políticos do nosso quotidiano.
Setúbal Revista – Que opinião tens sobre dois vetores tão importantes da nossa sociedade como a cultura e a educação? Como as caraterizas neste imenso Portugal?
Francisco Naia -Agradeço-te o convite para esta entrevista. Quanto à questão não tenho qualquer dúvida em situar-me, pois são duas áreas que têm muito a ver com a minha postura social, relativamente ao nosso caminho para o progresso e desenvolvimento social e cultural, visando sermos um país mais exemplarmente desenvolvido. Na cultura a riqueza é tanta que é confrangedor ver os atropelos que tem sofrido ao longo da nossa história. Escrever, criar, investigar, ser livre. É quase criminoso discordar, não ser corrupto! Mas “há sempre alguém que diz não”, custe o que custar! Na Educação, como professor, foram 34 anos de dedicação e luta, a ensinar português, inglês e alemão (filologia germânica) com o sonho de Abril e a liberdade nas mãos. Muitas oportunidades foram criadas com a escola pública. Muito se desenvolveram muitos jovens, que atingiram objetivos nunca antes imagináveis… mas depois os desgovernos, os falsos profetas, a poupança aberrante, os ministros disto e daquilo… os tais que preferiram recuar dois passos de cada vez, dividindo para reinar (mal).
SR – O encerramento de uma companhia de teatro como a Cornucópia deve-nos trazer preocupados. Afinal estes trágicos desfechos têm mais a ver com as afluências de público interessado ou com a política cultural?
FN – A Cornucópia e muitas outras vieram sendo encerradas, enquanto que o popularucho e o facilitismo se vão implantando. Tem de haver uma política reconstrutiva do teatro em Portugal. Desenvolver escolas para atores, fomentar o aparecimento de novos escritores e guionistas, criar, criar, criar… E o mesmo digo para o cinema, para a música, para “ as belas artes” etc.
SR – És, assumidamente, um cantautor da música e da língua portuguesa. Tão rico e diversificado que é o nosso dicionário como entendes que maior parte dos jovens músicos componham em inglês? É mais fácil ou o português sofre de qualquer tipo de degeneração linguística ou fonética?
FN – Este é um dos aspetos que mais me revolta e entristece. Chama-se música portuguesa aos discos ou criações em língua anglo-americana, com poemas aberrantemente mal escritos (há exceções, claro). Mas escondem-se os grandes cultores da língua portuguesa, ignoram-se os poetas, os músicos, escondem-se os nossos grandes compositores, a nossa história do “resistir”, abafam-se as vozes, calam-se os gritos, destrói-se a produção literária, discográfica, cinematográfica etc.. As rádios são poços de ignorância e de aculturação… “As play list”, essa aberrante censura dos nossos dias; os ignorantes da música portuguesa da sua profunda riqueza e da sua história de séculos, controlam tudo, são os vampiros do sistema… que dizer? Há tanto que fazer…
SR – Há uma mensagem a reter da tua já longa carreira. De que forma tentas passar essa mensagem e como sentes que o teu público a entende?
FN – A mensagem é simples: um por todos e todos por todos. A minha postura, enquanto escritor de poemas e de compositor, foi, desde sempre um não perder de vista o Alentejo, o seu povo, o trabalho, a alegria, o amor, a poesia popular, a dor da repressão, o canto chão, a ausência de valores. Mas também dos trabalhadores mineiros, dos pescadores da costa Alentejo litoral, dos que emigraram e imigraram e têm o coração na terra que os viu nascer. Tantos que eu vi chorar de saudade, nas minhas andanças pelas comunidades portuguesas. e não só, por esses sítios por onde andei: Africa, Canadá, Europa e todo o Portugal continental e ilhas. O meu público, muito abrangente, sempre me recebeu e continua a receber, com simpatia, compreensão e interesse.
SR – Da intervenção à música popular traçaste um percurso musical reconhecido mas, ao mesmo tempo, sinuoso, ou seja, fora dos mais banais circuitos comerciais. Como é que uma carreira sobrevive à margem desses circuitos?
FN – Quando em 1969 gravei o meu primeiro disco para a RCA, a sua divulgação na rádio foi enorme. De Norte a Sul ouviram-se os temas “Barco Novo” e “Amigo João”, por tudo quanto era rádio. Além fronteiras foi um sucesso. Logo a seguir foram entrevistas na Emissora Nacional, Rádio Renascença, Rádio Clube Português, etc., e em jornais e em revistas. Depois fui ao Zip-Zip, no Teatro Vilaret. Foi um êxito retumbante, que muito me surpreendeu. Dias depois os discos foram censurados e totalmente proibida a sua divulgação. A editora foi ameaçada. Meses depois saiu um terceiro disco etc, etc., todos muito divulgados, mas com faixa censurada aqui ou ali. O mesmo acontecia com outros cantores do momento como o Zeca, Adriano, Fanhais, José Letria, Vieira da Silva, Manuel Freire e vários outros. Resistiu-se! Após o 25 de Abril continuamos a produzir. Após o PREC, fecharam rádios, faliram editoras, mas nós nunca parámos de divulgar as nossas obras. Agora, hoje em dia, continuamos a resistir, apesar das rádios e tvs privadas, as novas tecnologias permitiram a criação de novos estúdio. Aparecem novos grupos, cantores e poetas de gerações mais jovens, e a imaginação de cada um não parou de criar. Os nossos seguidores não pararam de crescer, comprando CDs nos concertos, via email, nas Fnac, por correspondência etc..
SR – Os nossos canais de tv e rádio difundem, em larga maioria, o que é mais comercial e nem sempre de boa qualidade. O serviço público em termos de promoção artística parece cada vez mais comprometido. A culpa morre solteira?
FN – Morre mesmo solteira. Mas todos nós sabemos onde estão os males. Há cortes na cultura, está tudo estagnado. No nosso caso as rádios públicas e RTP, nada ou quase nada divulgam e, quando o fazem, são sempre os mesmos. Nota-se o aparecimento das grandes empresas de agenciamento, onde o lucro tem de ser garantido. Enfim, vivemos numa alienação total. Ignoramos e atropelamos tudo o que seja a cultura portuguesa. Há tantos vendilhões do Templo…
SR – Também és um homem do Cante alentejano. Projetos como a Ronda Campaniça promovem este tipo de canção que é hoje Património Imaterial da Humanidade. É a defesa da causa, o regresso às origens ou a nostalgia que te levam a embalar na tradição da música alentejana?
FN – Os alentejanos sabem preservar os seus padrões histórico- culturais como ninguém faz. Eu, como alentejano, também tenho essa missão. Não é um regresso às origens. É sim preservar um legado que “estavam” a querer fazer esquecer. O Canto alentejano é um canto de amor, luta e revolta.
SR – Foste aluno do José Afonso e, curiosamente, fundador da associação com o nome deste ícone da cultura nacional. A canção de intervenção tem ainda hoje lugar na nossa sociedade?
FN – Naturalmente! Antes resistir, agora protestar e denunciar os males da nossa política e do nosso quotidiano. As pessoas ouvem-nos bastante e felicitam-nos pelo nosso trabalho, pelos nossos projetos. Sabes que é assim…
SR – O teatro e o cinema também fazem parte do teu currículo enquanto compositor. A experiência foi positiva num país onde muitas vezes estas artes são relegadas para planos menores?
FN – Fiz musica, e cantei, sobre poemas de Joaquim Pessoa, na estreia nacional da peça “Felizmente há Luar”, de Luis Stau Monteiro, levada a cena pelo Teatro de Ensaio do Barreiro. Fui ator /cantor para a peça de Thomas BrooK e Luis Vicente, “Jeramias” (a História de um Burro). Percorremos o país e Ilhas; fiz música e poemas para o filme a “Noite e a Madrugada”, de Fernando Namora, com realização de Artur Ramos. Fiz música e interpretei várias peças infantis para a Televisão.
SR – Integras A Tertúlia Coimbrã de Miratejo. Como te revês na canção de Coimbra?
FN – Sempre cantei fados e baladas de Coimbra, enquanto estudante, sabendo ouvir os grandes mestre e sendo amigo de alguns deles como o Zeca, Adriano, Luís Góis, António Bernardino, António Portugal, Machado Soares, Almeida Santos, Manuel Alegre, Carlos Paredes e outros. No campo de uma certa postura, assumi-me como cantor tradicional dos fados, baladas e canções de Coimbra, sendo a Tertúlia Coimbrã de Miratejo, formada por um conjunto de excelentes músicos e cantores, um ponto de partida, pela grande qualidade do conjunto. Fazemos concertos, serenatas, participamos em tertúlias e encontros de grupos. Estivemos em Setúbal em três serenatas, organizados pelo cantor e jurista Manuel Guerra.
SR – Concordas com a subsídio dependência das artes? Até que ponto deve o Estado interferir na capacidade de programação, produção e realização de grupos e companhias?
FN – Não estou bem dentro deste eventual tipo de apoios. Mas vou estar atento. Intervir nunca! Apoiar sempre! E muito, que bem precisamos…
SR – É extensa a tua lista de edições discográficas. Que nos irás propor a breve trecho?
FN – Depois de uma pausa de cerca de 20 anos sem gravar, mas sempre em atividade de concertos, voltei, em 2006/7 com um CD “ Cantes do Além Tejo”, muito bem recebido, do qual se fizeram várias edições. Seguiu-se em 2009/10, o CD “ De Sol a Sol”, editora “Ovação”, também muito divulgado, do qual se fizeram 3 edições. Em 2012/13, editei o CD “ Francisco Naia e a Ronda Campaniça”, Editora Ovação”, um disco dedicado à viola campaniça e à música tradicional do Baixo Alentejo, já com três edições. Em 2015/16, foi lançado um CD “Nos Cantos da Memória”, com a participação do cordofonista Ricardo Fonseca, dedilhando violas de arame portuguesas – musica tradicional portuguesa com recolhas desde o Século 12 ao século 20., atualmente em divulgação com mais de duas dezenas de concertos marcados para 2017. Recentemente, em Novembro de 2016, participei num livro CD, editado pela Câmara Municipal de Idanha a Nova, designado” Viagem do Fado”. Neste momento preparo a saída de um albúm com uma seleção de canções do meu percurso desde 1969 a 1975, que designei por “ Francisco Naia – Canções por esses campos fora”. Penso ainda editar um CD designado “ Francisco Naia canta Luís Cília”
SR – A quem aconselharias a tua discografia?
FN – A meninos dos oito aos noventa e tal anos, claro!