Entrevista de Joaquim Gouveia
Amílcar Malhó defende a ideia de que a cozinha portuguesa é uma das melhores do mundo dada a sua riqueza e qualidade na confeção. No entanto admite que dada a sua diversidade se deverá falar em várias cozinhas portuguesas. Para este conceituado jornalista de gastronomia e vinhos comer bem é não exagerar na quantidade, saborear os alimentos e, de preferência, acompanhar a refeição com o vinho adequado. Autor do livro biográfico do saudoso e bem conhecido Chefe Silva, Malhó acredita que Portugal está bem servido de Chefes e cozinheiros. Alerta para as dificuldades das Confrarias Gastronómicas enquanto associações, fala sobre a alimentação correta para evitar excessos e da cozinha gourmet que é hoje usada para tentar valorizar os produtos. Acompanhe a entrevista e fique a conhecer um pouco mais sobre a nossa gastronomia.
– De tão variada e apelativa de que forma se pode definir a chamada “cozinha portuguesa”?
Na verdade pode dizer-se que existem «várias» cozinhas portuguesas. Na chamada cozinha tradicional encontramos, por exemplo, muitos pratos que foram influenciados por outros povos (como os árabes), mas temos a cozinha regional confecionada como base em produtos específicos de cada uma das regiões. E não podemos esquecer a nova cozinha portuguesa, seja de autor ou de fusão.
– Comer bem o que é? Comer de tudo sem limites ou selecionar pelo modo mais saudável de cada prato?
Comer sem limites nunca é comer bem. Comer bem pode ser comer devagar, para saborear, o que nem sempre é possível. Não exagerar na quantidade é saudável e, por isso, é comer bem.
A comida confecionada em lume brando, com produtos frescos e da região e com a bebida adequada para o que se come, contribui para que o resultado final seja, comer bem.
A comida confecionada com carinho e saboreada a uma mesa alegre, sabe sempre bem.
– Os portugueses têm propensão para a obesidade. Há quem diga que isso é fruto do fast food… O português gosta de comer, verdade?
Sim, o português gosta de comer e tem à sua disposição muitas e variadas opções que permitem não necessitar de fast-food, um tipo de alimentação que, consumida com regularidade, pode ser bastante prejudicial. Falta educação alimentar para se perceber que se pode comer bem, sem gastar muito dinheiro. No dia a dia devemos ter em conta o tipo de atividade que fazemos. Quem trabalha o dia inteiro sentado, não deve comer o mesmo que quem anda a pé. O aumento do número de diabéticos em Portugal devia servir de alerta. O importante é o equilíbrio.
– A cozinha portuguesa varia de região para região. Mas serão os produtos agrícolas e piscícolas made in Portugal, que lhe dão as caraterísticas. É possível confecionar um prato genuinamente nacional com produtos de supermercado?
Genuinamente nacional não. Mas hoje poucos podem fazer esses pratos pois os produtos «genuínos» – como é o caso de alguns peixes de mar – são, em regra, mais caros.
Por outro lado, o facto de se encontrar nas grandes superfícies produtos fora de época, importados, permite que se confecione quase tudo durante todo o ano, com prejuízo para a qualidade. A natureza sempre soube porque nos «recomenda» os produtos em certas épocas do ano.
– A certificação dos produtos tradicionais é segura?
A «certificação» de que as normas são cumpridas é garantida por empresas e organismos autorizados a prestar esse serviço e que devem ser reconhecidos para o efeito pelo Ministério da Agricultura do Desenvolvimento Rural e das Pescas. Na nossa região temos o exemplo do Queijo de Azeitão, cuja «certificação» para o uso da Denominação de Origem Protegida (DOP) é feita por um organismo privado. Por norma, as entidades certificadoras são idóneas.
– Qual o papel das confrarias gastronómica?
Como associações que são, têm as dificuldades de atuação próprias do associativismo. Umas são mais ativas que outras, em função da dinâmica dos seus dirigentes, mas todas apresentam como principais objetivos a defesa da autenticidade e a promoção dos produtos ou pratos que defendem. Tal como numa associação desportiva as atividades são normalmente desenvolvidas em recintos desportivos, numa confraria gastronómica as atividades têm como palco principal a mesa.
– Você foi o autor do livro sobre a vida e obra do saudoso Chefe Silva. Há legado a cumprir entre os chefes portugueses, ou seja, cumprir os itens de qualidade que o Chefe Silva deixou à nossa cozinha?
O Chefe Silva, como outros cozinheiros, sempre trabalhou no registo da chamada cozinha tradicional. Tentava seguir os modos de preparação e a utilização de produtos de acordo com o receituário original. Hoje, ainda há quem siga esse caminho mas os tempos são outros e o enorme aumento da oferta torna mais difícil seguir regras, nomeadamente quanto à sazonalidade. Mas felizmente que ainda muitos cozinheiros que se preocupam com a qualidade e a genuinidade.
– Existem alguns Chefes portugueses com estrela Michelin. Pode dizer-se que estamos bem servidos de profissionais neste setor?
As estrelas Michelin são importantes, sobretudo para uma franja de turistas (e nacionais), com forte capacidade económica. Trabalham normalmente com produtos de grande qualidade e a preparação dos pratos exige muita mão de obra. Por essa razão o custo é sempre elevado.
Quanto à pergunta específica, sim, estamos bem servidos de Chefes, mas também de cozinheiros. É preciso não esquecer que todos são cozinheiros e apenas alguns chefiam equipas (ou brigadas).
– O que é que a denominada “cozinha gourmet”, trouxe às tradições nacionais?
Às tradições nacionais trouxe muito pouco, embora haja muitos casos em que valoriza os produtos portugueses com a criação de novas propostas culinárias, a chamada «cozinha de autor». Já no caso dos pratos da cozinha tradicional, há quem os modifique, alterando produtos com o objetivo de criar novas experiências. Isso não pode ser admitido pois se não segue a receita, não pode ter o mesmo nome. O ‘gourmet’ é hoje usado para tentar valorizar os produtos, com apresentações mais cuidadas e afastando-os da imagem do consumo de massas.
– Os portugueses sabem escolher o vinho para cada prato?
Estamos a evoluir nesse sentido pois há muita informação nos media e os próprios contra-rótulos em muitos casos ajudam. Eu gosto muito do termo «maridagem» pois como sabemos um bom casamento é aquele em que uma das partes não se sobrepõe à outra, se complementam. No caso dos vinhos para os pratos, é um pouco esse princípio, procurando-se que o sabor de um, «encaixe» no sabor do outro. Mas trata-se de recomendações que nunca podem sobrepor-se ao gosto de cada um.
– A ceia de Natal, que se aproxima traz excessos que os portugueses raramente evitam. Afinal qual a melhor receita para uma consoada saudável?
Tradicionalmente procuramos pretextos para abusar e a ceia de Natal é ótima para esse efeito. Há todo um envolvimento que nos transporta para os excessos e não apenas alimentares.
No caso de uma «ceia tipo» temos o bacalhau com legumes e eventualmente batata, que nem é um prato pesado. Se a seguir vier o peru, também não é grave pois é uma carne branca. Depois são os fritos, os doces, as bebidinhas. Dependendo das quantidades, pode não ser mau. O pior é que as ‘festas’ são na ceia, no almoço e no jantar de dia de Natal e como normalmente há sobras, continuamos por mais uns dias. E sempre muito tempo sentados.
– Acredita que temos uma das melhores cozinhas do mundo?
Sem dúvida. Mas não temos uma, temos várias cozinhas.